quinta-feira, 25 de julho de 2019

Confissões

Santo Agostinho, Confissões, final do Livro IX:
 
"32. Foi conduzido o cadáver à sepultura. Fui e voltei, sem derramar lágrimas. Nem mesmo chorei durante as orações que Vos dirigimos, ao ser oferecido o Sacrifício da nossa redenção pela defunta, cujo cadáver já estava depositado junto do sepulcro, antes de o enterrarem, como ali é costume. Nem sequer chorei durante as orações ! Mas todo o dia senti, no meu íntimo, uma tristeza oprimente.

Com o espírito agitado Vos suplicava, com todas as forças, que sarásseis a minha dor. Creio que, se mo não concedíeis, era para gravardes na minha memória, ao menos por esta única experiência, quanto são poderosos os laços do hábito até na alma que já se não alimenta com palavras enganadoras. Lembrei-me de ir ao banho; ouvira dizer que este nome lhe fora dado por causa dos gregos lhe chamarem balanêion, por aliviar o espírito de angústias. Confesso também isso à vossa misericórdia, ó Pai dos órfãos, confesso que depois do banho fiquei como estava, sem conseguir expulsar do coração esta amarga tristeza. Depois adormeci.

Acordei e achei a minha dor bastante mitigada. Estando só, deitado no meu leito, recordei os versos verídicos do vosso Ambrósio: Vós sois, na verdade,

"Deus, Criador de todas as coisas, Regendo o mundo supremo,
Vestindo o dia com a beleza da luz, Vestindo a noite com a graça do sono,
Para que o repouso, ao labor de cada dia, Os membros fatigados restitua,
As mentes cansadas alivie e as tristezas angustiosas dissipe..."

33. Depois, pouco a pouco, voltava aos anteriores sentimentos a respeito da vossa serva. Recordava-me da sua convivência, piedosa para convosco, e santamente afável e paciente para comigo, e que de repente me fora arrebatada. Sentia consolação em chorar ante a vossa presença por causa dela e por ela, e também por causa de mim e por mim. As lágrimas que reprimia, soltei-as para que corressem à vontade, estendendo-as como um leito sob o meu coração. Este repousou nelas, porque aí estavam os vossos ouvidos e não os de qualquer homem que soberbamente interpretasse o meu choro.

Confesso-Vos agora tudo isso, Senhor, por escrito. Leia-o quem quiser, interprete-o como lhe parecer. Se alguém julgar que eu pequei, chorando uns breves minutos por minha mãe — que eu nesses momentos via morta ante os meus olhos e que tantos anos por mim chorara para que eu vivesse aos vossos olhos — , esse não se ria. Mas se é dotado de grande caridade, chore pelos meus pecados diante de Vós, que sois o Pai de todos os irmãos do vosso Cristo.

34. Agora, sarado já o meu coração desta ferida, na qual se poderia censurar a minha sentimentalidade, derramo diante de Vós, meu Deus, pela vossa serva, uma outra espécie de lágrimas. Manam dum espírito comovido pelos perigos que cercam toda a alma "que morre em Adão". Vivificada em Cristo ainda antes de ser libertada da carne, vivia de tal modo que o vosso nome era louvado na sua fé e nos seus bons costumes.

Contudo, não ouso dizer que desde o tempo em que a regenerastes pelo baptismo, não caísse de sua boca alguma palavra oposta à vossa lei. O vosso Filho, que é a Verdade, declarou: "Se alguém chamar 'louco' a seu irmão, será réu do fogo da geena". E ai da vida humana, ainda a mais louvável, se a julgardes sem a vossa misericórdia! Mas porque não examinais as nossas faltas com rigor, confiadamente esperamos algum lugar junto de Vós. Quem, porém, Vos enumera os seus verdadeiros méritos, que outra coisa expõe senão os vossos benefícios? Oh ! se os homens se reconhecessem como homens, "se aquele que se gloria se gloriasse no Senhor!"

35. Por isso, "Deus do meu coração, minha glória e minha vida", esqueço um momento as boas acções de minha mãe, pelas quais alegremente Vos dou graças, para Vos pedir perdão de seus pecados. Ouvi-me em nome d'Aquele que é a Medicina das nossas chagas, que foi suspenso do madeiro da cruz e, sentado "à vossa direita, intercede por nós". Sei que ela praticou a misericórdia e que perdoou de coração as faltas contra ela cometidas; perdoai-lhe também as suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se seguiram ao baptismo.

Perdoai-lhe, Senhor, perdoai-lhe, eu Vo-lo suplico, e "não entreis com ela em juízo". "Que a vossa misericórdia supere a vossa justiça", pois são verdadeiras as vossas palavras e prometestes misericórdia aos misericordiosos. Contudo, se alguém foi misericordioso, a Vós o deve, a Vós, "que Vos compadecereis de quem já tiverdes tido piedade e usareis de misericórdia com quem tiverdes sido misericordioso".

36. Creio que fizestes já o que Vos suplico, mas desejo, Senhor, que "aproveis esta oblação voluntária da minha boca". Perto do dia da sua morte, minha mãe não desejou que seu corpo fosse pomposamente sepultado, nem que fosse ungido com aromas, nem ambicionou um túmulo magnífico, nem se preocupou com tê-lo na pátria. Nenhuma destas coisas nos recomendou. Mostrou apenas desejo de que nos lembrássemos dela junto do vosso altar, onde nunca tinha faltado um só dia a render-Vos homenagens, porque sabia que lá se distribui a vítima santa que "destruíra o libelo de condenação, contrário a nós". Com essa vítima triunfou do inimigo que enumera as nossas faltas e procura acusações contra nós. Mas o nosso adversário nada encontrou n'Aquele com quem nós vencemos.

Quem poderá restituir a Cristo Jesus seu sangue inocente? Quem lhe poderá restituir o preço com que nos resgatou do inimigo para nos arrancar dele? Era a este mistério da vossa redenção que a vossa serva ligara a sua alma pelos vínculos da fé. Ninguém a arranque jamais da vossa protecção. Que o leão e o dragão nem à força nem por insidias se entreponham entre ela e Vós. Para que o astuto acusador a não convença e arrebate, ela não responderá que nada deve. Dirá antes que as suas dívidas lhe foram perdoadas por Aquele a quem ninguém pode restituir o que por nós pagou sem ser devedor.

37. Que ela esteja em paz com o marido, já que, anteriormente ou posteriormente à sua união com ele, com ninguém mais se desposou. Serviu-o com paciência, alcançando méritos para também o ganhar para Vós.

Inspirai, meu Senhor e meu Deus, inspirai aos vossos servos, meus irmãos, aos vossos filhos, meus senhores, a quem sirvo pelo coração, pela voz e pela pena, inspirai a todos os que lerem estas páginas que se lembrem, junto ao altar, de Mónica, vossa serva, e de Patrício, outrora seu esposo, pelos quais me introduzistes nesta vida, dum modo tal que eu ignoro.

Que se lembrem, com piedoso afecto, dos que foram meus pais nesta vida transitória e meus irmãos em Vós, nosso Pai, e na Igreja Católica, nossa Mãe, e meus concidadãos na eterna Jerusalém. Por esta suspira o vosso povo na sua peregrinação, desde a partida até ao regresso.

Assim, graças a estas Confissões, o desejo último de minha mãe será mais copiosamente cumprido, com as orações de muitos, do que somente com as minhas."